RUDIFRAN POMPEU


Rudifran Pompeu


A hora e a vez de Rudifran

Juliana Gonçalves dos Santos *
Um grupo de molecotes jogava bola em frente à residência do velho Onça. O verdadeiro nome do habitante daquela casa amarela ninguém nunca soube. Só um fato era certo: ele nunca deixava a sua fortaleza.
A cortina branca da janela da casa do velho Onça movia-se lentamente ao ser tocada pela brisa refrescante do verão de Uruguaiana (RS).
Por vezes, o agitar da cortina revelava a silhueta do homem que parecia sentado num banquinho alto para observar a pelada dos meninos.
Quando a bola caía na casa dele, ele acenava com as mãos permitindo o resgate da pelota. Não raro interagia com os jogadores e berrava de sua janela para um deles: “Magrão, tem que cruzar, tem que cruzar”.
Um dia, carros cantando pneus encostaram-se à casa do velho. Eram Veraneios, modelo de carro muito usado na época. Onça nunca mais apareceu. Tempos depois, os meninos da pelada ficaram sabendo que os automóveis eram da polícia.
De vida naquela casa só sobrou o leve movimentar da cortina, que agora não protegia a imagem de ninguém. Logo se descobriu: Onça foi caçado por ser comunista.
A figura daquele velho homem na janela alimentou por muito tempo o imaginário daqueles meninos. Um em especial: o Magrão, Rudifran Pompeu, que até hoje é cativado pelo mistério infinito de possibilidades que existe numa imagem qualquer numa janela qualquer de um lugar qualquer.
Dramaturgo e diretor do Grupo Redimunho de Investigação Teatral, criou em seus dois últimos espetáculos, “A Casa” e “Vesperais na Janela”, um ambiente habitado por figuras misteriosas nas janelas, trupes circenses, mágicos, o velho-do-saco e todo universo fantasioso que na sua visão é patrimônio imaterial da cultura brasileira.
Ao lado de sua atual assistente de direção e atriz, Izabela Pimentel, fundou o grupo em 2003, com os objetivos de se reinventar como ator (que também é) e promover por meio de suas peças um debate profundo sobre a alma humana. Talvez essas fossem pretensões grandiosas para o menino nascido em Uruguaiana, em 1967, filho de um comerciante e de uma dona de casa.
Quando os pais se separam, o pai largou o açougue que tinha e foi embora. Rudifran foi com ele, o destino? A casa da tia Zilca em Viamão,do outro lado do Rio Grande. Lá, conviveu com muitos primos e primas como Nei, Cilico, Nara, Estela, Lorena, Churuca. Além dos tios, René e Tomix. “Esse foi um momento muito intenso e feliz de minha infância. Meus primos e tios eram mesmo uma grande diversão. Éramos unidos e eu me sentia muito protegido. Morávamos num lugar distante. Tinha campo, cavalos, carroças. Meu tio (Tomix) era surdo e naquela casa tudo era falado muito alto…”, relembra nostálgico.
Anos mais tarde, Rudifran mudou novamente. Dessa vez para Canoas, região metropolitana de Porto Alegre, onde iniciou sua carreira. Hoje, o homem alto, branco e de traços grossos tem um rosto firme que não ganha sutileza nem através da transparência do verde de seus olhos. Tem o porte de quem impõe respeito sem precisar pedir. É uma pessoa que não é dada a pequenas conversas, futriquinhas ou meias palavras. “Sou um cara bruto, não sou agradável de conversar, não sou dado à cordialidade”, revela quase como se me alertasse.
Primeiras histórias
Um labirinto de portas e janelas infinitas. Essa é a primeira impressão quando se entra no casarão localizado na Rua Major Diogo, região do Bixiga, onde funciona a sede do grupo, além de ser também a Escola Paulista de Restauro. Com sua concepção italiana, o casarão foi construído em 1911, em um terreno que pertencia à família Almeida Nogueira. Esse espaço tombado pela prefeitura foi, em 2009, o cenário do meu primeiro encontro com Rudifran Pompeu, ganhador do Prêmio APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) como Melhor Autor Teatral 2006, e da Lei de Fomento do mesmo ano.
Era a minha terceira visita ao local. Havia estado no casarão outras duas vezes para assistir as peças que também eram encenadas ali. Encontrei o diretor com uma chave de fenda na mão. Ele trocava o fusível do chuveiro que estava queimado. Uma imagem surpreendente que revelava o que estava por vir. Não, ele não parecia ser mais uma figura enfadonha, prepotente ou alguém inebriado pelo próprio sucesso.
Sentado no chão da cozinha do casarão, iniciou a nossa conversa. Estávamos rodeados por uma pia velha de mármore amarelado, um forno antigo, um fogão de ferro pesado com quatro bocas. Na mesa um filtro de barro, moringa e dezenas de pequenas xícaras de alumínio. Estava nunca cozinha de alguma casa, no interior, em algum sertão? Talvez Rudifran tenha criado ao seu redor, no casarão no centro de São Paulo, um ambiente que lembrasse a casa da tia Zilca, em Viamão.
No chão, além de Rudifran, desfilam duas galinhas, Herculana e Ferina, e o galo Guto. “Ela está doentinha – diz ao apontar para a galinha menor, Herculana – é por isso que estou deixando ela comer aqui dentro”, complementa ao abraçá-la e tentar fazê-la apanhar com o bico o fubá amarelado que está no chão.
Quando a galinha adoentada faz cocô em sua calça, e ele levanta, sem pressa, para apanhar um líquido antibactericida, percebo qual foi a origem das outras manchas em seu jeans.
- Você sempre faz esse tipo de serviço? – pergunto referindo-me ao conserto do chuveiro que além de servir aos atores faz parte do cenário de uma das cenas de A Casa.
- Sim, aqui todo mundo faz tudo. Desde a composição dos figurinos até a montagem do cenário. Se a gente profissionaliza demais perde o encantamento do artesanal. Não quero ficar tão profissional quanto a Regina Duarte.
- Como diretor você fez apenas essas duas peça, correto?
- Sim, sou mais um ator do que um diretor – diz ao explicar que assumiu o cargo dentro do grupo porque ninguém mais quis.
- Você lembra do seu primeiro grupo?
- Eu tinha uns 15 anos e… Não, não. Foi antes eu devia ter uns 13. Isso. Era o grupo da Juventude Socialista. Depois fiz parte do Grito de Alerta. Não sei precisar quantas peças já fiz.
Rudifran viveu muito da efervescência cultural que pairava nos ares de Porto Alegre e de São Paulo entre as décadas 80 e 90. Conviveu com escritores e dramaturgos como Hermes Mancilha e Everton Bortotti e Plínio Marcos. “Frequentava um boteco chamado Redondo só pra encontrar o Plínio Marcos, gostava de conversar com ele e encher o saco dele com inúmeras perguntas”, conta.
Sua primeira grande apresentação em São Paulo foi com a peça “Peer Gynt”, escrita pelo dramaturgo norueguês Henrik Ibsen. Porém, pagava as contas mesmo o ministrar oficinas de teatro e aulas na extinta Secretaria do Menor. Como ator, topava de tudo, animava festas, feiras, eventos institucionais, era contratado por gente graúda, como a vez que interpretou um garçom maluco que torrava a paciência do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Formou-se mágico e exerceu a arte da ilusão por dez anos, quatro destes passou viajando por todo Brasil. Essa foi a época que ganhou muito dinheiro, mas não se sentia feliz. “Tem muita sujeira no meio da mágica, um roubando truque do outro, tentando passar a perna”, explica.
A figura do mágico também é uma constante em sua obra, sem o glamour e a pompa dos grandes shows. O mágico retratado por Rudi tem a roupa rota e faz de seu ofício uma maneira de colorir a realidade cinza.
Artista maltrapilho, o palhaço também é velho, triste e cansado. Viajante, pinta um sorriso no rosto e leva alegria, mesmo que rasa, para povoados longínquos.
O circo que chega e altera o cotidiano de uma cidade. Faz crianças quererem fugir com ele, em busca de aventura. Como o menino Rudi, que pediu carona ao caminhoneiro e foi de Canoas ao Rio de Janeiro só pra ver o mar.
Elementos autobiográficos e fantasias misturam-se no papel na hora de criar histórias. Rudi lembra o exato momento que descobriu que tipo de Teatro queria fazer.
“Não me lembro da data, 88, 89 ou se era 90. Não importa. Só sei que fui assistir uma das melhores ou a melhor coisa que já vi no teatro: ‘Paraíso Zona Norte’ do Antunes. Tudo era bom, a dramaturgia, o cenário, o elenco. Eu saí de lá em êxtase e pensei: ‘Esse é o Teatro que eu quero fazer, esse tipo de montagem, o texto a interpretação dos atores, tudo’.”
Era, na verdade, 1989, quando Antunes Filho encenou dois textos de Nelson Rodrigues, A Falecida e Os Sete Gatinhos. A Zona Norte carioca foi representada de forma lúdica por meio de um não-lugar que nada se assemelha a realidade.
O imaginário brasileiro é explorado ao máximo por todos os personagens que trazem, à flor da pele, a energia criadora que pode, a qualquer momento, se dissolver.
Mais tarde, Rudi viria a travar contato próximo não só com Antunes, mas com outros grandes nomes do teatro nacional, como Zé Celso, Rubens Corrêa e Roberto Lage, com quem chegou a realizar uma montagem.
Questões de família ou seu pai, sua filha   
A cada novo encontro que tenho com Rudifran a aliança dourada que usa na mão esquerda muda de dedo. Hoje, a herança do final do casamento de seus pais está no dedo anelar.
A mãe o queria Francisco. O pai, perpetuar o nome de um ator chamado Rudnei. A solução encontrada foi cada um ceder um pouquinho: Rudifran. A mãe Sirlei queria muito ter um filho Chico, tanto que houve a mesma tentativa no irmão mais velho do dramaturgo, Vifran, para quem ele hoje faz alguns trabalhos. “Sou o office-boy de luxo dele”, brinca. Só a caçula Ellen fugiu da sina de ser Francisca.
Na época que trabalhava com Roberto Lage, uma ex-namorada deu à luz à sua única filha, Ana Terra, hoje com 20 e poucos anos. “Fui muito próximo da minha filha até os dois anos dela. Embora eu trabalhasse em São Paulo com o Lage, eu ia toda a semana a Campinas visitá-la”, elucida. Ele para, parece refletir, buscar outras palavras e conclui em tom de desabafo: “Filhos são bons quando são pequenos, depois é que nem passarinho.”
Alguns anos atrás, “talvez 2005 ou 2006” houve um grande encontro de sua família em Viamão – RS. Foram três dias de festa, com a presença de pessoas de toda parte do Brasil. “Ao ver a minha família, alguns depois de tanto tempo percebi que o tempo passa que a gente envelhece. A vida é mais cruel para alguns e menos para outros”, relembra.
- A sua família é toda assim, ligada à arte como você?
- Não, a minha mãe até pouco tempo nem sabia direito o que eu fazia. Meu irmão é empresário de futebol. E se você conhecer o resto da família não vai acreditar. Eu tenho muitos primos broncos mesmo. Parecidos com cowboy de filme de faroeste. O tipo de cara que vem te cumprimentar e quase quebra o seu braço. Eu também sou um pouco assim. Não tenho frescuras. Gosto de colocar o pé no barro. Não tenho tempo a perder indo comprar uma calça da moda pra ir brincar com as minhas galinhas.
- Engraçado, você é um gaúcho apaixonado por Minas Gerais. Será que é por isso que eu ainda não ouvi nenhuma frase bairrista sua?
- Não, eu realmente sou contra o bairrismo. Desde pequeno no Rio Grande do Sul a gente aprende a ser dono de si, a não baixar a cabeça. Devíamos compartilhar mais o que temos de bonito e perceber que o que os outros têm é belo também.
Um fato específico sobre a sua família é lembrado com muito silêncio e reticências: a morte do pai.
O caixeiro viajante morreu de infarto quando passava por Campinas. “A data? Hã…não sei, acho que 90. Era junho, mês de aniversário dele. O quê? O dia…Não, não, não sei. Fiz questão de esquecer.” Embora não seja velho, conversar com Rudi traz aquela sensação de nostalgia encontrada nas histórias narradas pelos mais antigos. As datas mal são lembradas e quando o são não trazem certeza. A precisão conquistada por datas não interessa nesse relato.
A morte do pai foi avisada por BIP. “A mensagem dizia para avisar o filho do seu João que ele havia falecido”, explica.  De certo a pessoa não sabia que aquele número era do próprio filho que assim soube que perdera o pai.
Travessia   
No meu sexto encontro me deparo com um Rudi entristecido. Sua galinha tinha acabado de falecer. Pausa.
Como entender a delicadeza da dor sentida por alguém que perde o seu bichinho. Para tentar atingir o real peso que isso tinha foi necessário lembrar a mim mesma que este homem se diz mais dado a bicho do que a gente.
A mesma morte que encantou o seu pai encanta agora uma galinha. São duas mortes e o mesmo mistério. Nesse dia não indaguei muito. Sua voz estava rouca e desaparecia no meio das frases.
O que abala Rudi é a gratuidade na morte. “A morte é um coito interrompido”, reflete com olhar inquieto e questiona: “No que esse bichinho atrapalhava?”
A morte o impressiona muito. Sempre achou que morreria cedo, até mesmo antes dos 30, pois essa foi a sina de muitos dos homens da sua família.
Depois da morte de Herculana ele ficou por horas quieto, abraçado com ela. Aninhava a galinha junto ao peito, como fez quando ela ainda estava doente e como parecia fazer costumeiramente. No seu perfil de um site de relacionamento, Rudifran Pompeu transmuta-se em Guto Matraga. Um homem abraçado com uma galinha.
Pirlimpsiquice       
O grupo comandado por Rudi possui mais de 20 pessoas. A disciplina exigida por ele pede encontros diários com duração de quatro horas. A coexistência nem sempre é fácil. Lidar com os anseios, frustrações e com os egos de cada um muito menos. O Teatro proposto pelo gaúcho traz implícita a convivência intensa. “O ator é um homem que deserta de si. A crise pequena burguesa não combina com o sertanejo que buscamos”, esclarece em tom firme.
O Teatro é feito para “gente dura de raiz” que sabe que arte acontece na vida das pessoas, não se quer ser artista, se é. A investigação é intensa no cotidiano do grupo que busca formas de se surpreender como ator o tempo todo.
“Não faço Teatro só pra ganhar dinheiro, imagina se você escrevesse só pra ganhar dinheiro? Você não conseguiria e se fizesse com certeza algo morreria em você. Faço, primeiramente por uma necessidade minha e depois porque acredito que as pessoas realmente saem tocadas das nossas peças”, conclui.
Para ele a sensação de realização aparece quando as pessoas começam a comentar. “Talvez as pessoas gostem porque nós ainda somos roceiros, vivemos ainda na roça, não em Nova Iorque.”
- Pra você o que é dirigir?
- É ter sensibilidade diante da cena. Acho que está muito mais ligado a isso do que a algo mais técnico. Acredito que a função do diretor não pode ter peso de decisão na criação do ator.
- É verdade que você vendeu os direitos d’ A Casa?
- Sim, mas o prazo para ser produzido está se esgotando. Se não filmarem logo os direitos voltam para mim. Acho que não vai dar tempo. Melhor assim.
A margem da alegria
Rudifran é um homem de 43 anos que parece estar fadigado pelo concreto da cidade. Seu alívio é o sertão e a porta de entrada do seu descanso, a obra de Guimarães Rosa.
Há cinco anos ele busca inspiração para o trabalho que desenvolve com o grupo em terras rosianas. Ele visita Cordisburgo – MG. Pequena cidade atravessada por trilhos e toneladas e toneladas de carga. Do chão de terra ou paralelepípedos brotam cristais-de-rocha.
No início a ideia era encenar algo do Guimarães Rosa, mas o exorbitante preço dos diretos autorais exigido pela família fez o grupo tomar outro rumo. “Na nossa primeira tentativa de contato com a família de Rosa, recebemos a resposta que dizia que com dinheiro era difícil e sem dinheiro, como era o nosso caso, era impossível”, revela.
Sem a colaboração dos descendentes do escritor, Rudi decidiu tomar uma medida que consagraria suas duas peças. “Por que não tentar ver o que Rosa viu? E criar como ele criou?”.
Em 2009, o grupo retorna e vai pela quinta vez a Cordisburgo. Estavam ali para a investigação de Marulho, o caminho do rio, o próximo espetáculo. Naquela altura o espetáculo só tinha nome e ainda nenhuma linha escrita.
“O processo do grupo é sempre uma travessia. A viagem importa não pelo que vemos lá, mas pelo que sentimos. Esse é o ouro”, dizia ao orientar os atores e atrizes que embarcavam com ele neste caminho.
Em Cordisburgo em determinadas rodas de conversa o tema é um só: o homem Guimarães Rosa.
Algumas pessoas ali são citadas nas peças, pelo nome, temperamento ou história, como Brasinha, Dona Agripa, João Pião, Seu Antônio Sozinho. O grupo Miguilim, muito famoso, não só nos Gerais mais em todo o Brasil, surgiu para desmitificar a obra rosiana para o povo da cidade. É o que conta Daiane, integrante do grupo. “Guimarães Rosa era para o povo de Cordisburgo mais difícil do que cortar couve fininha”, brinca utilizando uma expressão do autor.
Em Cordisburgo bailam figuras como a do encrenqueiro Robertinho que diz ter feito pacto com o demo e consegue dizer as piores coisas com um sorriso frio e sarcástico no rosto. Em um filme de faroeste seria o bandido mais desprezível. Alto e magro. Na cabeça um chapéu surrado de cowboy. As mãos manchadas com sangue que nunca é seu. “No sertão tem dessas coisas”, me diz Rudi, ao ver que eu observo Robertinho com um semblante que deve ter denunciado a minha repulsa.   
Entre 19 e 29 de maio de 1952, Guimarães Rosa viajou pelo sertão de Minas Gerais acompanhando uma boiada conduzida pelo vaqueiro Manuel Narde, o Manuelzão. O grupo de Rudifran, em uma van, faz um trecho desse caminho. Passamos por Três Marias, Andrequicé e pelo Povoado das Pedras.
Na beira da estrada a caminho do Vale do Paraíba e da comunidade Rio das Pedras há um túmulo alto com o verde do mato se entrelaçando na fina cruz de madeira fincada na terra. Lá jaz Aristidinho que pediu para ser enterrado ali. Boiadeiro que era queira ficar pertinho da estrada para poder ouvir o som da boiada passar.
Algumas das estradas de terra batida ainda servem de passagem para as comitivas de bois. A paisagem sofre forte intervenção das indústrias de papel que interferem no cenário natural ao plantar quilômetros de eucalipto milimetricamente distribuídos. Nada lembra as árvores de pequeno porte espaças, inclinadas e tortuosas, retorcidas em suas ramificações irregulares típicas do cerrado.
Alguém reconhece uma das primeiras veredas de Guimarães. Vereda é coisa engraçada e bela de se ver. As veredas literalmente abrem caminho entre o cerrado e a caatinga e do seu solo emerge límpida água. O que faz uma vereda? Um campo verde, a água e muitas, muitas palmeiras de buritis.
A Barra do Rio d’Janeiro, rio verde como os olhos de Diadorim. Foi um dos destinos escolhidos por Rudifran, pois este teria sido o lugar real onde os personagens Riobaldo e Diadorim, de Grande Sertão Veredas, teriam se visto pela primeira vez. Uma trilha no meio da mata nos levou até o Rio São Francisco. O caminho até o rio é perigoso escorregadio, quem sabe belo. Não. O caminho até o rio talvez dependa de quem caminha. O rio é um. O rio é todos os olhares nele refletido.
Já a caminho de Cordisburgo nossa última parada foi o Rio das Velhas. Um trilhazinha no meio de um grande pasto desemboca na margem do rio. A água não é rosa como a do D’Janeiro, é leitosa e marrom.
Quem nunca parou para ver um rio correr talvez nunca entenda que é preciso ter paz diante das incertezas da vida. O rio vem, com o seu ritmo, curvando a mata e carrega com ele tudo o que não tem raiz. Ou tudo que se joga e se lança ao seu encontro.
Em uma das margens, enquanto contornávamos os pequenos abismos que se findavam na água avistei, na outra margem, um homem numa canoa com um cão que latiu latiu e latiu. Do homem só silêncio.
Rudi ia à frente e coordenava a fila indiana, cuidando para que nenhuma menina ficasse por último. Até que avistou uma grande pedra que servia de encosta, ela tinha o tamanho perfeito para receber nós todos. Éramos dezoito.
Rudi pediu para eles tentarem levar tudo aquilo para dentro de si. Perguntei-me se de fato haveria como trazer aquela imensidão leitosa de água, o cheiro de mato, o céu limpo e clarinho, o som dos passarinhos, o sussurro das águas passando, a imensidão sertaneja para dentro de si.
Por mais que ele quisesse se mimetizar naquele cenário algo que ia além de sua bermuda jeans novinha ou de sua regata Pólo azul marinho, o denunciava como figura estranha ao local. Ele observa o rio com os pés fincados nas pedras, na cintura um canivete, que parece ser ícone da sua busca pelo primitivo dentro dele. Ele observa o pássaro mirrado com penas brancas que passa dando leves e compassadas batidas de asas. Sentado tomava nota de algo, olha fixamente o caderno enquanto levanta a caneta centímetros do papel.
Rudi pediu silêncio. “Pensem no que tem acontecido nesses dias, no que aconteceu hoje, agora e tenham algum tipo de contato físico com a água”, acrescentou.
Mergulhei os meus pés no rio. De onde estou avisto no meu lado direito o infinito de margem, do lado esquerdo há um homem no meio do rio. É um dos integrantes do grupo, a água bate forte em seu dorso.
O rio que cruza a esquina da mata já não é o mesmo rio que bate nos meus pés. Ah, o rio traz tantas surpresas, passa por você, leva um pouco de seu suor conquistado na caminhada, leva algumas dúvidas e deixa um pouco de rio.
Mais de 70% do corpo humano é constituído de água. O rio passa e depois desse breve encontro de moléculas, eu e o rio, nós e o rio, modificados.
O rio vida, o rio passagem. O Rio das Velhas, descobriríamos mais tarde, foi na verdade, como sempre, a primeira vitima do progresso que acontece a quilômetros dali, em Belo Horizonte.
“A gente acha que vai se aventurar no mundo, tentar novas coisas e sair ileso disso? Não se engane”, diz Rudifran em voz alta, como para si mesmo, embora não me olhasse, dirigiu-se a mim.
Nem o meio nem o fim, o caminho
“Tenho que escrever um texto. O governo está me pagando para escrever um texto”, diz com voz séria e aflita. Na casa de Rudifran a televisão e o computador ficam ligados o tempo todo.
Seu processo de criação de Marulho, o caminho do rio é intenso e contínuo. “Eu início várias histórias e dou um título. Aí quando acho que não rende mais eu paro e começo outra”, revela, ele que raramente deleta um causo registrado.
No nosso último encontro no Centro Cultural Vergueiro, está com a cabeça raspada. “Eu tenho aquela doença sabe? Aquela que faz você arrancar os próprios cabelos”, explica referindo-se a tricotilomania.
Por coincidência, sentamos numa mesa e onde havia um folheto com alguns versos bucólicos. Ele para e olha por alguns segundos. “Vou guardar isso aqui, pode ser um sinal.” É um homem aberto as interferências do destino não só na sua vida particular mas na sua obra.
Pergunto-me o que Rudi busca. Talvez o sertanejo, a sabedoria dos roceiros, o que há de mais genuíno e doce na nossa cultura e na nossa gente. Como ele consegue captar toda essa fantasia universal e traduzir em códigos, letras, palavras, frases, cenas? Como ele consegue escrever textos tão simples e iluminadores do cerne humano? O como. A curiosidade de saber como ele faz o que ele faz, qual é o caminho interno e externo que ele percorre é o elemento mais encantador e incômodo em Rudifran Pompeu.
Quem assiste a peça Marulho (agora em cartaz) encontra estórias de pescador, personagens de uma cidade ‘afundada’, vidas influenciadas pelo rio, pelo mar. Além disso vê a cabeça de Rudi em uma bandeja.
O homem que encontra palavras para descrever o que muitas vezes as pessoas apenas sentem é um questionador da condição humana. Provoca o público ao mostrar sua própria fragilidade como artista, como ser humano. O sertanejo de alma se equilibra na simplicidade do essencial.
 
* Jornalista formada pela Universidade Mackenzie com pós-graduação em Jornalismo Literário pela Academia Brasileira e Jornalismo Literário (www.abjl.org.br), turma São Paulo 2009.

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